O direito nasce para regulamentar às relações em sociedade.
Quando crimes acontecem, o direito encontra uma forma de coibi-lo.
Quando surgem novas relações sociais trazendo algum reflexo para o mundo jurídico, surge também uma demanda legislativa para regulamentar e proteger a vida social.
No direito de família não é diferente.
A CF/88, por meio do art. 226, prevê que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
Ou seja, deve o Estado se preocupar em cuidar daquilo que é a base da sociedade.
Este cuidado reflete na necessária e constante atualização legislativa para trazer ao mundo jurídico relações familiares que estão excluídas, garantindo a todas as famílias os exercícios dos meus direitos.
Família consanguínea, cível, mosaico, anaparental, monoparental, socioafetiva ou homoafetiva. Todas elas, sem exclusão de nenhuma, são a base que fundamenta a sociedade.
Neste ponto, cabe acrescentar que o Estado age, cuidando da sua ‘base’, como se fosse um rio que, em alguns pontos deixa suas águas, e em outros traz para si águas de outras fontes.
Em algumas destas margens, o rio tende a se fortalecer por auxílio da natureza.
Neste rio de atuações do Estado, surgem as correntezas do extrajudicial, cujas águas são fortes e preparadas para cuidar das relações humanas.
Assim é o registro civil das pessoas naturais, que é responsável por registrar, publicizar e, entre outras importantes atividades, garantir o exercício dos direitos da pessoa humana.
O registro civil das pessoas naturais vem ganhando força e destaque a cada dia, seja através de novas e robustas atribuições, seja através da contemplação da sociedade, que visualiza o quão real e importante são os atos ali praticados.
Quando nasce um bebê, é o registro civil que anuncia este nascimento e prepara o Estado para preparar as políticas públicas para recepcioná-lo.
Quando alguém morre, é este mesmo registro civil que comunica aos órgãos regulamentadores e emissores de documentos, cancelando-os e evitando que novas relações sejam constituídas com documentos de pessoas falecidas.
Este mesmo registro civil, que dia após dia se fortalece e recebe novas atribuições, ganhou destaques nos últimos anos com o procedimento de alteração de prenome e gênero das pessoas transgêneros, reconhecimento de filiação socioafetiva, alterações de prenomes e sobrenomes dos maiores de idade e procedimentos envolvendo a união estável.
É uma evolução nunca vista na história do extrajudicial, muito embora há muito prevista, já que os registradores civis são profissionais do direito, altamente capacitados para atuar em prol da desjudicialização e extrajudicialização.
Não obstante, é importante esclarecer que a evolução que prosperava, parece vir à mingua no que toca ao procedimento de reconhecimento de filiação socioafetiva.
Veja só. Hoje é perfeitamente possível o reconhecimento de filiação socioafetiva da pessoa maior de 12 anos de forma desjudicializada, por meio de um procedimento que inaugura com requerimento conjunto do pretenso pai ou pretensa mãe socioafetiva, autorização dos genitores biológicos, concordância do filho(a) socioafetivo(a), além da apresentação de provas robustas da presença da socioafetividade, por meio do trato familiar de pai/mãe e filho(a) e conhecimento público do estado de filiação.
Este procedimento, após preenchido todos os requisitos ora explicitados, é analisado, primeiramente, pelo representante do Ministério Público, que, deferindo, retorna ao cartório de registro civil para conclusão pelo oficial de registro civil e subsequente averbação à margem do assento de nascimento.
Quando um procedimento de filiação é realizado, nasce um pai, uma mãe, um filho.
O fim do progresso vem com a reforma do CC, cujo anteprojeto em discussão apresenta a temerária redação do art. 10, §2º “O reconhecimento de filiação socioafetiva de pessoa com menos de dezoito anos de idade será necessariamente feito por sentença judicial e levado a registro, nos termos deste código”.
É possível, de imediato, encontrar um erro grosseiro de redação, já que o reconhecimento de filiação, seja biológico, seja socioafetivo, é objeto de averbação à margem do registro de nascimento. Não há um registro isolado próprio para reconhecer filhos.
O segundo grande equívoco está na vedação do reconhecimento socioafetivo de modo extrajudicial para os menores de dezoito anos.
E ele se repete com outro artigo introduzido no anteprojeto: “art.1617-C, caput: “O reconhecimento de filiação socioafetiva de crianças, de adolescentes, bem como de incapazes, será feito por via judicial”.
Como aqui já brevemente explicado, o registro civil das pessoas naturais está preparado e já vem, desde meados de dois mil e dezessete, realizando inúmeros procedimentos de reconhecimento socioafetivo de adolescentes acima de doze anos. Todos de forma segura, rápida e eficiente (mais de 11 mil procedimentos foram realizados, conforme os números levantados pela Revista Cartórios com Você).
Proibir a realização destes procedimentos de forma desjudicializada é exatamente o mesmo que negar à base da sociedade, a proteção estatal, a mesma tutelada e prevista no art. 226 da CF/88.
Uma barreira surge nas correntezas do registro civil, enfraquecendo o rio que fortalece às relações familiares.
Não é permitido ao direito regredir, ignorar a realidade das coisas como são. E mais que isso, enfraquecer instituições que estão preparadas para prosperar ao lado da sociedade.
Fica aqui a torcida para que os deputados federais e senadores, por meio de suas comissões, reparem este mal e acrescentem no Código Civil justamente o Procedimento já (bem) existente para os reconhecimentos de filiação socioafetiva, deferindo a todos os maiores de 12 anos, as facilidades existentes no exercício dos seus direitos de forma desjudicializada.
Fonte: Migalhas